
Uma viagem emocionante pelo caminho da contabilidade
Até aqui, vocês já viram que sabem, sim, fazer contabilidade. Nos capítulos anteriores já aprenderam a técnica do lançamento necessária à escrituração contábil. Ficaram sabendo também que a escrituração contábil é o registro sistemático de todas as operações financeiras de uma empresa e que esses registros são feitos em livros contábeis, como o Livro Diário e o Livro Razão.
Agora vamos dar uma pausa e abrir espaço para a memória e a reflexão.
Porque a contabilidade não é só números, regras e obrigações legais: ela é também história viva, que ecoa do passado e projeta visões para o futuro.
Este capítulo é um convite: vamos caminhar juntos por essa estrada, do tempo das canetas tinteiro às plataformas digitais, para entender que o contador não é escravo da tecnologia, mas senhor da interpretação que dá vida aos números.
Começando pela caneta tinteiro...
É claro que a contabilidade nasceu muito antes dela. Já estava presente nas tabuletas de argila da Mesopotâmia, nos registros do Império Romano, nas partidas dobradas de Veneza. Mas, para efeito deste capítulo, vamos assumir a caneta tinteiro como nosso divisor de águas: o ponto em que a escrituração contábil ainda era artesanal, mas já caminhava para a era da mecanização.
Durante muito tempo, o Livro Diário foi escrito à mão, é isso mesmo, à caneta. Os contadores utilizavam-se das famosas canetas tinteiro e faziam uma caligrafia impecável, linda, quase que desenhada.
Esse estilo artesanal de escrituração sobreviveu até o início da década de 1970.
Passando pelos rolos e placas de gelatinas...
Posteriormente, o Livro Diário passou a ser escriturado em máquina de datilografia comum, mas com um adaptador, que permitia a escrituração do Livro Diário e simultaneamente a do Livro Razão (Fichas Razão).
O nosso Joãozinho poderia perguntar:
— Mas, professor, como assim escriturar o Livro Diário em uma máquina de datilografia?
A verdade é que a datilografia fazia parte essencial do processo. O contador comprava em papelarias formulários próprios, acompanhados de um papel carbono especial (copiativo), e neles datilografava todos os fatos contábeis da empresa. Cada formulário preenchido equivalia a uma futura página do Livro Diário, que iam sendo acumuladas para serem utilizados na etapa seguinte do processo.
Essa segunda etapa envolvia os famosos rolos ou placas de gelatina, usados para copiar os formulários datilografados. Cheguei a trabalhar com os dois, mas preferia os rolos — achava mais práticos. O rolo, colocado em um equipamento de madeira conhecido como "Máquina de Gelatina" ou "Duplicador de Gelatina", ou ainda por outras denominações, conforme a região geográfica, permitia uma única utilização diária, já que a gelatina precisava de um tempo para ficar apta a uma nova utilização. Já as placas eram individuais, uma para cada folha do livro, e também só podiam ser utilizadas uma vez ao dia. Por isso, o contador precisava manter uma quantidade adequada de placas em estoque. Quando bem conservados, tanto os rolos quanto as placas duravam bastante tempo.
O funcionamento era simples: o texto datilografado no formulário, impregnado pelo carbono, era transferido para a gelatina. Em seguida, as páginas em branco do Livro Diário eram pressionadas contra a superfície da gelatina, absorvendo a tinta e formando a nova página pronta.
Se ainda parece confuso, pense nas figurinhas de chiclete: bastava umedecer o braço, colar a figurinha e o desenho ficava estampado na pele. A lógica era a mesma: primeiro o formulário passava para a gelatina, depois da gelatina para o livro.
O próprio Livro Diário também era comprado em papelarias, normalmente com 400 páginas em branco. Antes de começar a utilizá-lo, era obrigatório lavrar o termo de abertura na primeira página e o termo de encerramento na última. Só depois disso, e do registro na Junta Comercial ou no Cartório de Registro Civil, é que o contador poderia iniciar a escrituração pelo processo das gelatinas.
Era um trabalho artesanal, braçal e que exigia paciência e atenção. Qualquer erro significava dor de cabeça: como o livro já estava registrado, a correção não era simples. Era desse jeito que se cumpria o dever de manter a escrituração formal da empresa.
Esse processo, praticamente, foi encerrado na década de 1980, quando então as máquinas eletrônicas de contabilidade começaram a ganhar mercado, facilitando com isso sua aquisição pelas empresas e escritórios de contabilidade, diminuindo bastante o trabalho braçal na elaboração do Livro Diário. Na máquina eletrônica, própria para a contabilidade, à medida que se fazia o lançamento contábil, a mesma já executava as operações de adição e subtração e tinha ainda mais alguns recursos, pois guardava os históricos do lançamento na memória, e com a digitação dos códigos desses históricos a mesma os datilografava automaticamente. Essa máquina “aposentou” o sistema de gelatinas, pois os formulários emitidos por ela, seriam, posteriormente, as próprias páginas do Livro Diário, já que iam sendo acumulados para ao final do exercício (ano civil) serem encadernados, formando, com isso, o próprio Livro Diário. O registro desse livro no órgão competente continuou sendo obrigatório, mas passou a ter uma ressalva onde constava que o mesmo já se encontrava escriturado anteriormente ao seu registro.
Essa máquina eletrônica de contabilidade não teve vida muito longa, pois logo começou a proliferar o uso dos "Microcomputadores", aí sim, começando diminuir o trabalho braçal do contador, quanto a escrituração contábil e geração do Livro Diário e do Razão, entre outros relatórios contábeis.
O Buraco Digital – Uma História Real
Por falar na chegada do Microcomputador, importante relatar aqui também essa passagem real que tive pela minha vida de Contador.
Lá pelos idos do ano de 1985, eu, como tantos outros colegas contadores da época, ainda resistia ao avanço repentino da tecnologia, mais especificamente em relação aos Microcomputadores que começavam a pipocar por tudo que era lado.
Determinado dia, o patrão recebeu na empresa um vendedor de microcomputadores — novidade que ainda causava estranheza em muita gente. O aparelho nem era tão caro, mas o que pesava era a necessidade de manter contrato de assistência técnica mensal, pois, pelo que se ouvia, vivia dando problema.
Meu patrão ficou animado com a possibilidade da compra. Eu, mais cético, hesitei. Afinal, havíamos adquirido recentemente uma “maravilha” tecnológica: a famosa máquina contábil Gendata. Aquela máquina eletrônica era o ápice da evolução contábil até então. Como abrir mão tão rápido?
Percebendo minha resistência, o vendedor resolveu alfinetar:
“É... todo contador tem medo mesmo de computador.”
A frase bateu seco. E doeu.
Mas eu não deixei barato. Olhei bem nos olhos do sujeito e respondi — sem gaguejar:
“O dia que inventarem um computador com um buraco em cima, e tudo que acontecer na empresa — notas fiscais, recibos, pagamentos, recebimentos — a gente jogar nesse buraco e ele destrinchar tudo sozinho... aí sim, o contador vai ficar preocupado.”
Falei sem rir, sem deboche. Falei com convicção.
Naquele tempo, lá em 1985, parecia apenas uma resposta espirituosa. Mas vendo hoje, percebo que eu estava profetizando o futuro.
Na verdade havia sim um "buraco", não necessariamente em cima do computador, mas, até então, invisível aos nossos olhos, e esse buraco invisível seguiu aumentando ...
Ao longo desses quarenta anos (1985/2025) muita coisa foi acontecendo, dando visibilidade ao tal "buraco". Com o avanço dos computadores, a contabilidade começou a entrar em uma nova era, em especial com a proliferação dos sistemas contábeis informatizados. Pacotes desenvolvidos em linguagem simples, vendidos no mercado e rapidamente adotados por empresas e escritórios de contabilidade, no começo ainda em sistemas isolados, instalados em um único computador, sem integração, mas já representando um enorme salto. Lançamentos, controle de estoques, folhas de pagamentos e apurações de impostos passaram a ser feitos com muito mais agilidade.
Mas a grande virada veio com a internet.
A contabilidade deixou de ser algo confinado a pastas físicas ou ao HD de um computador e passou a se conectar em rede. Os sistemas internos começaram a se integrar: Faturamento, pessoal, financeiro e contabilidade passaram a conversar entre si em grandes plataformas de gestão — os chamados ERPs. Essa integração interna preparou o terreno para a etapa seguinte. Pouco depois, os próprios sistemas contábeis passaram a enviar dados diretamente ao governo. Foi aí que a contabilidade deixou de registrar apenas “para dentro” e passou a prestar contas “para fora”, de forma transparente e quase imediata. Era o caminho aberto para o que viria logo em seguida: o SPED e, mais tarde, o eSocial.
Quando o passado ilumina o futuro
Todo contador de verdade desconfia daquilo que promete tudo sem entregar nada. Mas também reconhece — como eu reconheço — quando o futuro bate à porta.
Desse relato podemos concluir que não temos que temer a tecnologia. Devemos, como sempre fizemos, convidá-la a sentar-se ao nosso lado. Não como ameaça, mas como parceira silenciosa — pronta a executar o trabalho duro, enquanto nós, humanos, cultivamos o que só o tempo e a consciência nos deram: a sensibilidade, o julgamento ético, a escuta atenta das entrelinhas dos números.
Até aqui nos afinamos com ela. E assim, resgatamos o verdadeiro papel do contador: não mais o escrivão do passado, mas o intérprete lúcido do presente e o estrategista do futuro. Somos nós quem damos voz aos dados mudos, direção aos números dispersos, ética às decisões apressadas. Num mundo onde tudo é pressa, o contador é quem sabe onde parar, olhar, e enxergar além.
Aquele buraco que um dia imaginei virou portal. E quem aprendeu a lançar nele a informação certa, com o olhar certo, não teme mais a tecnologia — governa com ela.
E se quisermos um exemplo concreto de até onde esse portal nos levou, basta olhar para o SPED e o eSocial.
O Sistema Público de Escrituração Digital (SPED), criado em 2007, é o grande marco dessa virada: nele, os livros contábeis deixaram de ser volumes físicos encadernados e passaram a existir como arquivos digitais, validados eletronicamente e transmitidos diretamente ao Fisco. O Livro Diário, o Razão, as demonstrações financeiras e até as notas fiscais eletrônicas foram integrados em um ambiente único, moderno e transparente.
Logo depois, veio o eSocial, reunindo num só canal eletrônico todas as informações trabalhistas, previdenciárias e fiscais de empregados. Algo que, nos tempos das canetas ou das gelatinas, pareceria ficção científica, hoje é rotina do dia a dia de qualquer empresa, seja ela gigante ou pequena.
Esses sistemas são a prova viva de que o tal “buraco digital” não era apenas uma metáfora, mas uma realidade que se expandiu até engolir a contabilidade inteira — e devolvê-la mais conectada, mais ágil e mais transparente.
Por isso, o contador moderno já não se perde em pilhas de papéis ou carimbos intermináveis. Sua função é maior: interpretar, validar e dar sentido estratégico a dados que nascem digitais. O futuro que parecia distante já chegou, e o SPED e o eSocial são testemunhas históricas de como a contabilidade atravessou o limite da era digital e encontrou um novo lugar no mundo: menos burocrática, mais confiável, mais integrada.
E agora, uma nova onda já se forma no horizonte — ou melhor, dentro das próprias mesas de trabalho: a Inteligência Artificial. Diferente do SPED ou do eSocial, que nasceram como exigências do Estado, a IA surge como uma força espontânea, inevitável, que invade planilhas, relatórios e análises. Ela não pede licença — já está nos ajudando a interpretar documentos, automatizar lançamentos, detectar inconsistências, antecipar riscos.
Mas aqui cabe o alerta: quem tentar lutar contra ela perderá tempo; quem souber trabalhar junto com ela ganhará futuro. A IA não substitui o contador; ela o desafia a deixar para a máquina o cálculo bruto e a conciliação repetitiva, enquanto assume o que nenhuma linha de código alcança: o julgamento ético e a visão estratégica. Os tinteiros, as gelatinas e os primeiros softwares foram etapas importantes de uma longa estrada. Do mesmo modo, os sistemas atuais são degraus que nos conduzirão a algo maior. E o contador que souber caminhar junto com a Inteligência Artificial continuará essencial — não pelo que calcula, mas pelo que decide.
O contador além da máquina
Um sistema pode processar milhões de registros em segundos. Mas só o contador, com conhecimento profundo, consegue responder o que esses números realmente querem dizer — e, mais ainda, se isso está correto, justo e ético.
Aprender contabilidade continua sendo vital porque é dela que nasce a leitura crítica da realidade econômica.
Quem domina a essência não se perde em sistemas: sabe discernir, sabe interpretar. Sabe que, por trás de cada tela cheia de dados, há sempre um princípio, uma lógica e uma história a ser contada.
A tecnologia acelera. O contador dá direção.
O digital integra. O contador assegura confiança.A máquina executa. O contador interpreta.
A Inteligência Artificial já arrisca a interpretar, mas o contador, afinado com ela, é quem dá o sentido.
Esse é o verdadeiro papel do nosso ofício. E aqui fica a lição maior: aprender contabilidade é aprender a enxergar além do óbvio.
Concluindo...
E assim encerramos esta viagem: o passado mostrou o caminho, o presente nos desafia, e o futuro — esse sim — continuará precisando de contadores de verdade.
Neste capítulo percorremos juntos uma jornada pela história da contabilidade, da nostalgia artesanal à era digital.
E concluímos: a tecnologia muda, os instrumentos mudam, mas a essência permanece. O contador continua sendo guardião da confiança, tradutor dos números e intérprete da realidade econômica.
No próximo capítulo vamos falar um pouco de legislação, já que é ela que sustenta toda essa engrenagem contábil, já nos preparando para o último capítulo do nosso Livro Digital, onde, enfim, iremos mergulhar definitivamente na contabilidade empresarial.
Vamos conhecer então o Tripé Contábil. Vem na fé!
Texto original de 30/06/2001 > Repaginado e atualizado em setembro de 2025